Há muito tempo repito aqui que, embora nossos ouvidos sejam responsáveis por captar as ondas sonoras através da audição, “quem escuta é o cérebro“. Essa mensagem, também repetida por muitos outros profissionais, significa que a capacidade de compreender a mensagem sonora tem a ver com conhecimentos e habilidades cerebrais previamente estabelecidos.
Dessa maneira, não adianta apenas ouvidos ou implante cocleares funcionando bem, se nosso processamento cerebral dos sinais auditivos está deficiente. Isso nos leva ao conceito do “conectoma”.
O Conectoma Cerebral
“Você é suas sinapses.”
Joseph LeDoux, 2002 (in Synaptic Self)
Nosso sistema nervoso central é composto por cerca de 100 bilhões de neurônios. Eles são responsáveis por analisar, processar e comandar todas as atividades sensoriais, motoras e cognitivas que realizamos. Para tanto, esses neurônios precisam estar ligados entre si e aos órgãos sensoriais e motores, através de conexões conhecidas como sinapses.
Os neurônios são formados na vida intra-uterina, a princípio sem comunicações entre eles. Por volta das 27 semanas de gestação, inicia-se o processo de sinaptogênese (formação de sinapses – conexões entre os neurônios). Esse tem seu pico por volta dos 3 anos, quando o cérebro conta com cerca de 1 quatrilhão de sinapses (aproximadamente 10.000 sinapses por neurônio).
Já os “caminhos” escolhidos para conexão entre os neurônios não são os mesmos em todas as pessoas. Essa mapa é definido pela nossa carga genética (fator intrínseco) e pelas experiências ou estímulos externos (fatores extrínsecos). Chama-se conectoma o mapa de todas as conexões sinápticas presentes no cérebro e cada ser tem seu cérebro conectado de uma maneira diferente.
A forma particular de cada conectoma está por trás das características e habilidades únicas de cada indivíduo. Esta observação levou o pesquisador Sebastian Seung afirmar na sua excelente palestra de 2010 no TED (com legendas em português): “Eu sou meu conectoma (I am my connectome)”.
O desafio de desvendar o conectoma humano é proporcional ao gigantesco número de sinapses presentes no sistema nervoso. Em 2009 o governo americano empenhou milhões de dólares nesse sentido, no projeto Human Connectome Project. Liderados pelas Universidades de Harvard e da Califórnia, cientistas passaram a desenvolver diversas linhas de pesquisa para traçar o mapa geral das conexões cerebrais em seres humanos. Ainda estamos distantes de construir o mapa completo.
Períodos Críticos
A formação de sinapses acontece principalmente nos primeiros anos de vida e em menor escala até o início da adolescência e na vida adulta. Durante essa fase, as sinapses que são utilizadas tendem a ser mantidas e fortalecidas. Outras conexões se desfazem, por inutilidade e falta de estímulo.
No caso específico da audição, a estimulação através dos sons e da linguagem oral ajuda a manter as vias auditivas cerebrais, tornando-as mais “fortes”. De maneira oposta, a falta de estímulos auditivos, causada pela surdez ou pela pouca exposição a fala enfraquece as vias auditivas centrais, pela eliminação das suas sinapses.
Podemos dizer assim que a porção auditiva do conectoma precisa se formar com estímulos suficientes nos primeiros anos de vida, em que se dá o período crítico para a audição.
Qual o impacto da surdez no conectoma?
A necessidade de formar sinapses auditivas não se aplica apenas a via neural que leva o estímulo auditivo do ouvido ao cérebro. Avanços na técnica de ressonância magnética funcional mostram que as áreas cerebrais trabalham em conjunto, mais do que imaginávamos antes.
Como ilustra a figura ao lado (extraído do artigo Neurocognitive factors in sensory restoration of early deafness: a connectome model, Lancet 2016), a via auditiva está conectada a diversas outras regiões cerebrais indispensáveis à linguagem, sendo interdependente de outras habilidades cognitivas como a memória, a atenção, o planejamento. Essas conexões também são formadas por sinapses nos períodos iniciais da vida.
A falta de audição e de um ambiente rico em estímulos auditivos no período crítico para a formação dessas conexões pode levar a sequelas cognitivas que impactam de forma importante a audição.
Desta maneira, é fácil perceber que a reabilitação auditiva através de aparelhos ou implantes cocleares restaura apenas em parte o funcionamento da porção auditiva do conectoma cerebral.
Esse entendimento também explica o que já sabíamos há muito tempo apenas pela observação. Nas crianças com surdez profunda congênita, a reabilitação auditiva precoce é fundamental para minimizar o impacto da privação auditiva no conectoma.
Assim, a reabilitação precoce da audição está ligada não apenas a melhores resultados de fala e linguagem, mas também com um menor impacto em habilidades como as funções executivas do cérebro.
É possível melhorar nosso conectoma?
Ainda estamos longe de mapear todas as conexões que compõem o conectoma. Entretanto, alguns conceitos relacionados a sua formação são bem estabelecidos. Um deles é o da plasticidade cerebral – a capacidade do cérebro alterar suas conexões mesmo na vida adulta. Embora o período mais intenso de formação de sinapses ocorra nos primeiros anos de vida, esse processo se mantém em menor escala durante a vida.
Sabemos que músculos, articulação, coração e pulmões precisam de atividades físicas para manterem-se saudáveis. De forma análoga, o cérebro necessita manter-se ativo – e desafiado – ao longo da vida. Já para otimizar nossas habilidades auditivas e linguísticas, é importante atuar em mais de uma frente.
Aparelhos auditivos e implantes cocleares são o primeiro passo para o restabelecimento de níveis satisfatórios de impulsos auditivos, mas há mais a fazer. A fonoterapia de reabilitação e treinamento auditivo também são fundamentais para o sucesso do tratamento. Mais recentemente, vem sendo investigada a hipótese de que terapias cognitivas possam incrementar outras habilidades, como memória, foco e atenção, trazendo melhora na habilidade auditiva.
Diante dessa compreensão, é esperado que num futuro breve teremos protocolos mais completos de tratamento, baseados na estrutura “conectômica” da linguagem. Esses ajudarão a identificar as dificuldades específicas de cada pessoa, bem como a melhor estratégia de reabilitação em cada caso.
Referências:
TED: Eu sou meu Conectoma
The Lancet: Neurocognitive factors in sensory restoration of early deafness: a connectome model
Nature: Connectome imaging for mapping human brain pathways