A HISTÓRIA DO IMPLANTE COCLEAR
Fase I (1748-1940) – A Cóclea é Elétrica
Os primeiros indícios de que a audição através de estímulos elétricos seria possível datam de experimentos do séculos XVIII e XIX. Sem os conhecimentos adquiridos com nessas investigações – algumas bem simples – a ideia de tratar a surdez com estímulos elétricos não faria sentido. Numa perspectiva mais ampla, as primeiras datas aqui descritas coincidem com a descoberta do papel da eletrofisiologia.
1745 – Alemanha
Ewald Georg von Kleist era clérigo luterano e jurista formado pela Universidade de Leipzig. Durante sua passagem pela Universidade holandesa de Leyden e por influência do naturalista e matemático William´s Gravesande, acabou de interessando por física. Seus estudos redundaram a invenção da garrafa de Kleist. Considerado o primeiro capacitor, sua invenção permitia pela primeira vez na história o armazenamento de eletricidade estática dentro do vácuo de uma garrafa de vidro.
1746 – Holanda
Pieter van Musschenbroek, cientista da universidade de Leyden, também era aluno de William´s Gravesande. Algumas referências afirma que seus trabalhos correram de forma independente aos de Kleist, embora acabassem redundando na criação de um capacitor com jarra bastante semelhante ao do colega alemão. Entretanto a história reservou-lhe mais glórias, sendo a Garrafa de Leyden frequentemente referida como o primeiro capacitor. Sua invenção facilitou o desenvolvimento de pesquisas que promoveram grande avanço no campo da eletrostática. O armazenamento de energia pelas garrafas de Leyden permitiu o desenvolvimento das primeiras baterias.
1748 – Inglaterra
Neste ano, o pintor e pesquisador da eletricidade Benjamin Wilson, utilizou uma garrafa de Leyden para aplicar uma corrente elétrica na cabeça de uma mulher surda. POde-se considerar esse o primeiro relato do uso de estímulo elétrico numa pessoa surda. Na obra “A treatise on electricity”, de 1952, ele descreveu assim seus experimentos (tradução livre para o português):
“Estando o vaso coberto e eletrificado por duas voltas, apliquei a extremidade de um fio grosso, que estava preso à cobertura do frasco, à têmpora esquerda, logo acima da orelha; em seguida apliquei a outra extremidade do cabo preso ao frasco na região oposta da cabeça e isso resultou numa pequena explosão. Ela ficou surpresa e percebeu uma calor na cabeça, notadamente através dela, de um ouvido ao outro. Eu repeti o experimento 4 vezes, com choques elétricos mais fortes a cada vez.”
Segundo Wilson, a repetição dos experimentos por alguns dias resultou numa melhora da audição da mulher. Isso o animou a repetir os experimentos em outro 6 pacientes, sem o mesmo sucesso.
1800 – Itália
Nascido em Como na Itália em 18 de fevereiro de 1745, Alessandro Volta se tornou professor de física da Escola Real aos 29 anos. Apaixonado pelo estudo da eletricidade, seus estudos redundaram no desenvolvimento da pilha voltaica, que precedeu a bateria elétrica atual. O advento de suas pilhas deu grande impulso a eletroquímica e abriu espaço para as primeiras pesquisas eletrofisiológicas, muitas delas realizadas por ele mesmo.
Volta e outros pesquisadores da época aplicaram descargas elétricas em cadáveres, em rãs vivas, e em diversas partes do corpo (músculos, olhos, no cérebro!) de pessoas vivas, incluindo eles mesmos. No já clássico experimento de 1800, Volta usou suas recém invetadas baterias e introduziu hastes metálicas carregadas eletricamente em seus condutos auditivos. Em seguida concluiu que:
“Uma sensação desagradável, claramente perigosa, um choque no cérebro, me impediu de repetir o experimento”
Em seguida teve umaa percepção auditiva, cuja descrição serviu de impulso aos pesquisadores do futuros:
“Um estrondo na cabeça… Uma crepitação, uma sacudida, um borbulhar, como uma sopa bem grossa fervendo”
A obra de Alessandro Volta é repleta de fatos grandiosos. Feito conde por Napoleão Bonaparte em 1810, Volta não viveu para assistir a unidade elétrica fundamental, o volt, ser nomeado em sua homenagem em 1881. Hoje seu legado pode ser visitado no Tempio Voltiano, às margens do lago de Como, incluindo sua importante participação na história do implante coclear.
1855 – França
Guillaume Benjamin Amand Duchenne era um médico neurologista francês nascido em Boulogne-sur-Mer em 1806. Trabalhando em Paris, ele desenvolveu especial interesse sobre os efeitos da eletricidade no corpo humano. Seus estudos o tornaram o pai da eletroterapia, hoje utilizada rotineiramente por fisioterapeutas.
No capítulo XXII do livro de 1883, “Selections from the Clinical Works of Dr. Duchenne“, intitulado “Nervous Deafness”, Duchenne descreve em detalhes uma série de experimentos eletrofisiológicos da audição. Enquanto os experimentos anteriores se valiam de corrente contínua, Duchenne fez uso de corrente elétrica alternada. A íntegra do livro, digitalizado e disponibilizado pela Microsoft, encontra-se no link sobre o título.
No primeiro parágrafo com capítulo, o autor curiosamente adverte:
“O título desta seção obriga-me a dizer antes de começar o assunto que não tenho gosto por experimentos puramente terapêuticos. Eu me arrependo de ter me envolvido nos experimentos eletroterapêuticos que descreverei a seguir”, “…um dia tive a ideia de estimular eletricamente o nervo corda do tímpano através do meato auditivo externo. Não tendo sido suficiente o uso dos meus ouvidos e de meus amigos, foram também utilizados ouvidos de pacientes surdos, para os quais eu relatei a possibilidade de alguma melhora. Por sorte alguns desses pacientes ficaram curados ou melhoraram. Foi assim que acabei curando através da minha curiosidade fisiológica.” “…a notícia dessas curas espalharam-se rapidamente … eu fui obrigado a continuar esses experimentos empíricos.”
Embora o objetivo inicial do pesquisador de Boulogne fosse estudar o nervo corda do tímpano, ele descreve os resultados e os efeitos terapêuticos em uma séria de casos de “surdez histérica”, “surdos mudos”. A descrição dos pacientes submetidos aos experimentos reúne diversas sensações auditivas, além de alterações do paladar e da salivação.
1868 – Alemanha
O médico clínico geral alemão Rudolf Brenner publica o livro “Estudos e observações nas áreas de eletroterapia” (apenas em alemão, nesse link), descrevendo seus trabalhos com estimulação elétrica da audição.
1905 – Estados Unidos
Em 13 de junho e primeira vez, uma patente americana é concedida para um dispositivo, que ele nomeou em inglês de “osteophone“, destinado a surdos. La Forest Potter, de Nova York, argumenta em sua patente deseja:
“… entre outras coisas, melhorar os meios de transmitir corrente elétrica através do osso da mastóide e das entradas naturais do ouvido para levar estimulação fonética.”, “Minha invenção foi desenhada primariamente para pessoas surdas, que perderam parcial ou totalmente a capacidade de ouvir através do funcionamento normal dos ouvidos”
Entretanto, nas pesquisas realizadas para confecção desse texto, não encontrei referência ao seu uso na prática clínica. É interessante notar a semelhança estrutural do arco e da forma de aplicação, com os arcos dos aparelhos auditivos de estimulação óssea e os mais modernos implantes de ancoragem óssea atualmente disponíveis.
1930 – Estados Unidos
Entre a metade do século XVIII até o início da segunda guerra mundial, os pesquisadores médicos se mantiveram relativamente afastados dos fenômenos eletrofisiológicos da audição. Até então, pessoas com infecções crônicas dos ouvidos corriam risco de vida, impostos por complicações graves, como meningites e abcessos no cérebro. Os cirurgiões de ouvido, à época munidos apenas de martelo e cinzel, dedicavam boa parte do seu trabalho tentando erradicar essas infecções. O aparecimento da penicilina para uso clínico em 1940, seguido dos demais antibióticos, diminuiu bastante a incidência dessas infecções doenças. Quando elas passaram a poder ser tratadas com medicamentos, os cirurgiões podem ter voltado sua atenção para técnicas cirúrgicas aplicadas à surdez.
Neste ano, os pesquisadores Ernst Glen Wever e Charles Bray, do departamento de psicologia experimental de Princeton documentaram o então chamado “potencial microfônico coclear” ou microfonismo coclear, como chamamos hoje.
A pesquisa pode ser considerada a prova cabal de que a criatividade é fundamental para o desenvolvimento científico: Foi utilizado um gato e um telefone! Após uma cirurgia para remover parte do cérebro do animal e expor seu nervo auditivo. Através de um eletrodo em contato com o nervo, os pesquisadores colheram os potenciais presentes no mesmo e os encaminharam para um receptor telefônico, situada numa sala acusticamente isolada, ao lado do ambiente onde o gato se encontrava. A qualidade do Cat Telephone era tal, que enquanto alguém falava direitamente na orelha do gato, sua fala podia ser ouvida com nitidez na sala ao lado através do receptor.
A pesquisa de Wever e Bray teve um impacto tão importante quanto ao experimento de Alessandro Volta em 1800, abrindo caminho para uma série de estudos para compreender melhor o funcionamento da cóclea enquanto transdutora de energia sonora em eletricidade. O conhecimento obtido com esses estudos teve papel fundamental nas pesquisas do implante coclear.
1937 – Estados Unidos
No rastro dos relatos de Volta, Wever e Bray, pesquisadores de Harvard passaram anos investigando as consequências acústicas de estímulos elétricos aplicados ao ouvido. Os experimentos realizados po S. Stevens (laboratório de psicologia), H. Davis (departamento de fisiologia) e M. H. Lure (otologista) eram compostos por circuitos elétricos nos quais um eletrodo de cobre era inserido no ouvido banhado em soro fisiológico. Um segundo eletrodo terra era posicionado no braço. Os efeitos acústicos eram colhidos pelo relato das pessoas testadas, mas também através de uma saída para um transmissor de rádio. Entretanto, para Stevens, o futuro da estimulação elétrica da audição não era algo certo:
“É possível ouvir música e algumas canções populares podem ser reconhecidas, mas a qualidade é definitivamente ruim… A fala pode ser reconhecida enquanto fala, mas poucas palavras podem ser entendidas. Fica claro que a estimulação elétrica não promete muito ser uma alternativa viável de audição, devido a presença de tanta distorção”
1939 – Estados Unidos
Homer Dudley, pioneiro da engenheira eletrônico e acústica trabalhou nos laboratórios da empresa Bell Telephone em Nova York no desenvolvimento de um sistema capaz de decodificar e sintetizar a voz humana. Seus trabalhos redundaram no desenvolvimento do Vocoder (síntese das palavras voice + encoder, em inglês). Sua invenção aplicava 10 filtros para extrair a frequências dos sons da fala, codifica-los e transmiti-los facilmente. Comprimindo o sinal sonoro e eliminado os sinais acima e abaixo do necessário para a compreensão da fala, a mensagem poderia ser enviada para locais distantes através de cabos.
Sua primeira aplicação foi a telefonia intercontinental. Diferente tipos de encriptação do sinal transformaram o vocoder numa importante ferramenta para troca de informações secretas durante a segunda guerra mundial.
Mais tarde, os princípios operacionais do vocoder foram importantes para desenvolver o processamento de som nos primeiros implantes cocleares multicanais.
Anos 1940 e 1950
As décadas de 40 e 50 viram nascer a audiologia moderna. O termo “audiologia” aparece no dicionário Oxford pela primeira vez em 1946. Nos EUA, Raymond Carhart, terapeuta da fala e Norton Canfield, otologista (ambos miliares) se viram acolhendo milhares de ex-combatentes da segunda guerra mundial com perdas auditivas. Com a ajuda da imitanciometria desenvolvida pelo dinamarquês Otto Metz em 1946, o trabalho desenvolvido por Carhart garantiu-lhe o posto de pai da audiologia.
Não só o desenvolvimento da audiologia, mas também a reaproximação entre otologia e audição, formaram um sólido alicerce para o desenrolar da próxima fase na história do desenvolvimento dos implantes cocleares: As primeiras cirurgias.