Tratamento da SURDEZ: onde estamos e para onde vamos

tratamento da surdez presente e futuro dr luciano moreira otorrino

A audição  é o único sentido humano que trabalha 24 horas por dia sem parar, estejamos acordados ou dormindo, e que recebe informações de todas as direções, vindas de perto ou de longe e até mesmo através das paredes. Tudo isso sem pedir licença. A audição cria o mapa onde o corpo se orienta no espaço, detecta riscos, conecta pessoas, permite linguagem e organiza o cérebro. Quando funciona bem, ninguém se lembra dela. Quando falha, desestrutura a vida inteira.

A perda auditiva é uma das condições crônicas mais comuns do planeta. Estima-se que mais de 1,5 bilhão de pessoas tenham algum grau de surdez hoje, número projetado para chegar a quase 2,5 bilhões em 2050 segundo a OMS. No Brasil, os dados do IBGE apontam que cerca de 10 milhões de brasileiros convivem com perda auditiva em diferentes níveis. Pessoalmente, acredito que esse número seja subestimado pela quantidade enorme de casos não diagnosticados, seja pela falta de informação e acesso, quanto pelo estigma ainda existente em relação à  surdez.

O problema raramente vem sozinho. Um dos acompanhantes mais frequentes é o zumbido, sintoma que pode surgir por estresse, trauma acústico, perda auditiva súbita ou progressiva, e que costuma transformar a qualidade de vida tanto quanto a própria surdez.

O impacto cognitivo da perda auditiva também não é mais discutível. A ciência avançou demais para fingirmos que “é só usar um aparelho quando piorar”. Em crianças, mesmo perdas de grau leve podem comprometer fala, aprendizagem e comportamento. Em adultos, afetam desempenho profissional, relações sociais e saúde emocional. Em idosos, a relação com cognição e equilíbrio é tão forte que hoje a perda auditiva é reconhecida como o principal fator de risco modificável para demência. O estudo ACHIEVE, publicado em 2023 no Lancet, trouxe a evidência que faltava: tratar a perda auditiva reduz o risco de declínio cognitivo em idosos, especialmente naqueles mais vulneráveis.

A saúde auditiva também conversa diretamente com a saúde global. A surdez aumenta o risco de quedas (por piora do equilíbrio e atenção espacial), hospitalizações (pela somatória de isolamento, fragilidade e comorbidades), depressão e até mesmo morte. Ou seja, não se trata de um “problema do ouvido”. É uma condição sistêmica, que mexe com cérebro, movimento, humor, relações afetivas, produtividade e longevidade.

Se por um lado a surdez ativa uma cascata devastadora de consequências sobre a saúde global do indivíduo, por outro há um conjunto crescente de evidências de que o tratamento da perda auditiva é capaz de proteger (ou mesmo reverter) essas consequências de forma bastante efetiva.  

Tratamento da surdez: a realidade atual

Conhecendo esse amplo impacto da surdez, entramos no ponto que, na prática, mais interessa a quem sofre com o problema: o que existe hoje para tratar a perda auditiva. E a primeira coisa que o leitor precisa entender é que a solução depende do tipo de perda. Chamamos de surdez condutiva quando o problema está na condução do som até a cóclea, e de neurossensorial quando a lesão está dentro da cóclea, nas células sensoriais. São mundos diferentes, com causas e tratamentos completamente distintos.

A perda auditiva condutiva é causada por um problema mecânico, um impedimento físico que dificulta a passagem das ondas vibratórias do som pelo ouvido antes delas chegarem na cóclea. A otite média secretora é um bom exemplo. Trata-se de uma inflamação do ouvido em que se acumula uma secreção, um catarro bastante espesso, na parte interna do tímpano. Ela é mais comum na infância, mas também aparece em adultos. Esse bloqueio tira da criança a nitidez dos sons, afeta fala, atenção, aprendizagem, comportamento, e muitas vezes ninguém percebe o que está acontecendo. Em muitos casos, a solução é rápida, segura e muda a vida da criança de um dia para o outro: a colocação do tubo de ventilação, também conhecido como “carretel” ou “tubinho”, que drena o ouvido e devolve a ventilação e a audição. É um procedimento de poucos minutos que evita meses de desenvolvimento prejudicado.

As perfurações do tímpano são outra causa de surdez condutiva, e seguem a mesma lógica. Mergulho, infecção, cotonete, acidentes domésticos… as causas são inúmeras. O resultado é sempre o mesmo: ouvir pior e viver sob risco de infecções recorrentes. Nesses casos, a timpanoplastia é a cirurgia que reconstrói o tímpano e devolve a barreira natural do ouvido. Quando a  otite se torna crônica e começa a destruir a cadeia ossicular, partimos para reconstruir não só o tímpano, mas também os ossículos da audição, restaurando a transmissão do som de forma definitiva.

Outro problema frequente é a otosclerose, um capítulo à parte na otologia. Ela trava o movimento do estribo, o osso mais delicado do corpo, levando a uma perda auditiva progressiva que muda a vida do paciente. A cirurgia que trata a otosclerose, a estapedectomia (ou estapedotomia), é um dos procedimentos mais bonitos e gratificantes da nossa área. Com uma prótese microscópica devolvemos vibração onde ela deixou de existir. Em muitos casos, o paciente entra no centro cirúrgico escutando mal e sai horas depois ouvindo muito melhor. É uma transformação real e imediata, e por isso é um dos carros-chefe do nosso trabalho.

Portanto, quando se trata das perdas condutivas, a grande maioria delas tem solução definitiva. Mas a história muda quando o problema está dentro da cóclea. A perda neurossensorial não é mecânica. Nesses casos, lidamos com a degeneração ou destruição parcial das células ciliadas, que são células sensoriais especiais, responsáveis por transformar vibração mecânica em impulsos neurais que são enviados ao cérebro com as informações auditivas. Não temos, no mundo inteiro (por enquanto) um medicamento capaz de regenerar essas células hoje. Mas temos tecnologia, e tecnologia muito boa, capaz de reabilitar a audição na grande maioria desses casos.

Os  aparelhos auditivos  modernos são minicomputadores com microfones altamente direcionais, filtros de ruído inteligentes, algoritmos baseados em inteligência artificial, conectividade direta com celulares e televisões, além de designs cada vez mais atraentes. Eles não “amplificam tudo”. Eles organizam o som, priorizam fala, removem barulho e ajudam a entregar clareza. É uma nova era, bem diferente dos aparelhos simples e analógicos do passado.

Mas há limites. Quando mesmo o melhor aparelho não consegue entregar compreensão de fala suficiente, ou quando a perda é de grau severo ou profundo, começamos a entrar no território do implante coclear. O implante substitui a função das células ciliadas destruídas. Em vez de tentar corrigir a cóclea defeituosa, ele faz o trabalho dela. Trata-se de uma das maiores conquistas da ciência aplicadas à medicina. Uma tecnologia que revolucionou o tratamento da surdez na história moderna. Uma pessoa que vivia isolada pode voltar a entender conversas, participar da vida social, falar ao telefone e retomar autonomia. Isso vale para crianças, adultos e idosos. Em todos eles, o implante coclear é um divisor de águas, a recuperação de um futuro de comunicação e integração que haviam se perdido com a surdez.

Esse é o panorama do tratamento hoje: um conjunto de soluções que vai desde um procedimento simples como o carretel até tecnologias avançadas como os implantes cocleares. Nunca tivemos tantas opções, nem resultados tão incríveis.

Mas obviamente não chegamos ao fim da história da surdez. A partir daqui, podemos finalmente olhar para o futuro, e o futuro da surdez é um dos campos mais empolgantes da medicina atual. Vamos entrar na genética, terapias celulares, edição de DNA e nas tecnologias que já começam a deixar a fase experimental para tocar a prática clínica.

A era da regeneração auditiva

Se o presente já é incrível, o que vem pela frente pode ser ainda maior. Estamos entrando em uma nova era da medicina, marcada pela possibilidade concreta de corrigir a audição na origem do problema. Essa virada não é teoria de laboratório nem promessa vaga, mas sim o resultado de uma década de avanço acelerado em genética, biologia molecular e terapias de precisão.

A primeira revolução já aconteceu, no diagnóstico. Exames de sequenciamento genético como o NGS, que até poucos anos atrás eram restritos a centros de pesquisa, hoje fazem parte da nossa prática clínica. Eles nos permitem identificar causas genéticas da surdez com uma precisão que seria impossível há 5 ou 10 anos. Para muitas famílias, isso significa finalmente entender o que aconteceu. Para nós, médicos, significa saber para onde dirigir o tratamento. Para a ciência, é o mapa que orienta as terapias que estão surgindo. Entretanto, a grande mudança não está apenas em diagnosticar melhor – está em corrigir.

Nos últimos anos, acompanhamos um avanço impressionante nas terapias gênicas voltadas para mutações que afetam diretamente a função das células ciliadas. Nenhuma linha de pesquisa avançou tanto quanto aquela voltada para as mutações no gene OTOF, responsáveis por um tipo específico de surdez congênita neurossensorial, também conhecida como neuropatia auditiva. Pela primeira vez, temos estudos clínicos demonstrando que entregar uma cópia funcional do gene diretamente à cóclea pode restaurar a transmissão sináptica que estava ausente desde o nascimento. É difícil exagerar a importância desse momento.

Em 2024–2025, os primeiros resultados de terapia gênica para OTOF mostraram recuperação auditiva real, e até compreensão de fala em crianças que nunca tinham escutado. Em 2025, o tratamento recebeu fast track da FDA, um reconhecimento oficial de que estamos diante de algo com potencial real, urgente e transformador. Isso abre portas para aceleração regulatória e desenvolvimento de outros tratamentos com a mesma lógica.

E o OTOF não está sozinho. Outras frentes de pesquisa começam a ganhar corpo: terapias para mutações em GJB2, modulação de vias de regeneração dentro da cóclea, ativação de células de suporte para que voltem a funcionar como precursores celulares, uso de CRISPR para edição de DNA diretamente no ouvido interno e até abordagens combinadas com fatores de crescimento capazes de estimular regeneração parcial das células ciliadas. Nada disso é ficção científica: são estudos reais, alguns ainda pré-clínicos, outros já ensaiando entrar em humanos.

Estamos vivendo o início de algo que, se der certo, muda tudo: a possibilidade de restaurar a audição natural, e não apenas compensá-la.

Aqui entra meu compromisso pessoal. Passei minha carreira inteira tratando a surdez com o que havia de melhor em cada época: aparelhos auditivos, cirurgias de orelha média, implantes cocleares. Agora, pela primeira vez, vejo a chance real de exercer a medicina num momento em que talvez seja possível corrigir a causa primária da surdez. Meu objetivo é este. Quero estar ativo e preparado para oferecer aos pacientes assim que ela se tornar uma realidade acessível, segura e regulamentada. Acredito que assim completarei meu ciclo profissional, realizado e grato por presenciar e fazer parte de uma jornada sonora tão extraordinária.

O caminho ainda tem etapas importantes, e não há atalhos. Leva tempo, exige rigor científico e responsabilidade ética. Mas a direção está traçada, o ritmo está acelerado e os resultados iniciais são os melhores que já vimos.

Estamos prestes a entrar em uma era em que talvez possamos não apenas tratar a surdez, mas superá-la. Se os últimos cem anos nos deram a possibilidade de amplificar som e de estimular diretamente o nervo auditivo, os próximos anos podem nos dar algo ainda maior: a chance de devolver a fisiologia natural da audição a quem nunca ouviu ou deixou de ouvir. Esse é o futuro que se anuncia. E é para ele que estamos caminhando, dia após dia.

O Dr. Luciano Moreira  atende pacientes com perda auditiva do mundo inteiro através da Telemedicina. Para marcar sua consulta, clique aqui.

Compartilhe:

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn

Deixe um comentário

4004D9B7 CA8C 49D1 BD29 3D399A2450EF

Dr. Luciano Moreira – CRM-RJ 65192-3

Médico Otorrinolaringologista especializado em cirurgias da audição

Posts mais recentes