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A SURDEZ GENETICA explicada pelo Dr. Luciano Moreira

A surdez genética é definida como a perda auditiva ocasionada por alterações no material genético de um indivíduo. Constitui um dos defeitos sensoriais mais prevalentes, acometendo uma parcela considerável de crianças em todo o mundo. A perda auditiva, independentemente de sua etiologia, pode exercer um impacto profundo e multifacetado no desenvolvimento da linguagem, nas capacidades cognitivas, no bem-estar psicossocial e, consequentemente, na qualidade de vida global do indivíduo. É fundamental compreender que a perda auditiva não é meramente um sintoma isolado, mas frequentemente a manifestação de uma alteração patológica subjacente, sendo as causas genéticas cada vez mais reconhecidas como protagonistas nesse cenário.  

A identificação da causa genética da surdez transcende o simples rótulo diagnóstico. Para muitas famílias, ela representa o término de uma “jornada diagnóstica” que pode ser longa, dispendiosa e emocionalmente desgastante. A ausência de uma etiologia clara para a perda auditiva de uma criança frequentemente gera um estado de ansiedade e incerteza parental significativo. Nesse contexto, o diagnóstico genético oferece não apenas uma explicação, mas também um alicerce para um direcionamento terapêutico mais assertivo e, crucialmente, para um aconselhamento genético familiar preciso, permitindo um planejamento reprodutivo informado e a identificação de outros membros da família em risco.

O impacto psicossocial da surdez genética, portanto, inicia-se muito antes da confirmação laboratorial, permeando as primeiras suspeitas e a subsequente busca por respostas. O diagnóstico etiológico, ao fornecer clareza, pode aliviar parte considerável dessa carga emocional, delineando um caminho mais claro para o manejo e suporte.  

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SURDEZ GENÉTICA: Incidência e prevalência (global e no Brasil)

Globalmente, estima-se que a perda auditiva afete aproximadamente 1 em cada 500 recém-nascidos , e cerca de 50% dos casos de perda auditiva congênita possuem uma base mendeliana. Em nações desenvolvidas, os fatores genéticos são responsáveis por mais da metade dos casos de surdez na infância. Um dado de particular relevância indica que 80% da perda auditiva que ocorre antes da aquisição da fala (pré-lingual) é atribuída a causas genéticas.  Segundo a OMS, há mais de 1,5 bilhão de pessoas no mundo com algum grau de perda auditiva, de acordo com o Relatório Mundial da Audição (2021).

No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que há mais de 10 milhões de brasileiros com algum grau de surdez. Destes, apenas 2,3 milhões de enquadram nos critérios que a lei brasileira considera deficiência auditiva.

Uma observação relevante para o contexto brasileiro é a afirmação de que, historicamente, tem havido uma maior predominância de causas não genéticas (como infecções congênitas, complicações perinatais e otites) em comparação com países desenvolvidos. Contudo, este cenário está em transformação. Com a progressiva melhoria dos indicadores de saúde materno-infantil e a consequente redução da incidência de causas adquiridas de surdez, espera-se que a proporção relativa dos casos de origem genética aumente significativamente. Um estudo realizado em Jundiaí, São Paulo, com neonatos identificados através de um programa de triagem auditiva neonatal universal, ilustra essa tendência: dos casos de perda auditiva com origem pré-natal, 36,4% tiveram etiologia genética confirmada, e outros 36,4% foram classificados como presumivelmente hereditários.  

A variabilidade nos dados de prevalência geral de surdez no Brasil e a tradicional percepção de que causas não genéticas ainda predominam , quando contrastadas com a elevada proporção de surdez pré-lingual de origem genética observada em países com sistemas de saúde mais estruturados para o diagnóstico genético , levantam uma importante questão: a possibilidade de um subdiagnóstico significativo das causas genéticas da surdez em nosso meio.

À medida que o Brasil avança na transição epidemiológica, com a redução das causas ambientais e infecciosas de perda auditiva, a importância relativa da surdez genética se tornará ainda mais proeminente. Este fenômeno impõe uma necessidade premente de aprimorar a capacidade diagnóstica para a surdez genética no país, o que inclui não apenas a expansão do acesso a testes genéticos específicos e abrangentes, mas também a capacitação contínua dos profissionais de saúde para o reconhecimento, investigação e manejo adequado desses casos.  

Classificação: Surdez Sindrômica vs. Não Sindrômica e padrões de herança

A surdez genética é classicamente dividida em duas grandes categorias, com base na presença ou ausência de outros achados clínicos associados:

A surdez genética pode ser herdada segundo diferentes padrões, cujo conhecimento é a base para o aconselhamento genético:

A distinção inicial entre surdez sindrômica e não sindrômica é um passo fundamental no planejamento da investigação diagnóstica e do manejo subsequente. Contudo, a observação de que uma proporção considerável de casos inicialmente classificados como não sindrômicos pode, com o evoluir do tempo e o surgimento de novos achados, ser reclassificada como sindrômica possui implicações clínicas profundas. Isso significa que a avaliação no momento do diagnóstico da perda auditiva pode não ser definitiva. Sinais e sintomas sutis de uma síndrome subjacente podem não estar presentes ou não serem reconhecidos precocemente, emergindo apenas em fases posteriores do desenvolvimento.  

Esta dinâmica da classificação ressalta a importância crítica do acompanhamento longitudinal e da reavaliação periódica dos pacientes. A ausência de outros achados clínicos no momento do diagnóstico inicial da perda auditiva não deve, de forma alguma, excluir a possibilidade de uma forma sindrômica de surdez. Esta consideração é especialmente válida em casos onde a etiologia genética específica não foi identificada ou quando os achados genéticos são de significado incerto.

Um diagnóstico tardio de uma condição sindrômica pode resultar no atraso de intervenções essenciais para o manejo de comorbidades associadas, como problemas cardíacos, renais, visuais ou endócrinos, impactando negativamente o prognóstico global e a qualidade de vida do paciente. Portanto, uma abordagem clínica prudente envolve não apenas a investigação completa no momento da apresentação, mas também um plano de monitoramento vigilante, com atenção para o possível desenvolvimento de características extra-auditivas ao longo do tempo.

As bases moleculares da surdez genética

A base molecular da surdez genética é extraordinariamente heterogênea. Atualmente, mais de 125 genes foram identificados como associados à surdez não sindrômica , e o número total de genes implicados em todas as formas de surdez genética ultrapassa 150. A base de dados Online Mendelian Inheritance in Man (OMIM) cataloga 665 entradas distintas para formas sindrômicas de perda auditiva. Essa vasta diversidade genética sublinha a complexidade do diagnóstico molecular.  

Principais genes e mutações implicados

Dentre os inúmeros genes envolvidos, alguns se destacam pela maior frequência e relevância clínica:

A imensa heterogeneidade genética da surdez torna o diagnóstico molecular um desafio. Embora o foco inicial na investigação das mutações mais comuns nos genes GJB2 e GJB6 seja justificado pela sua prevalência em muitas populações, a ausência de alterações nesses genes não exclui uma etiologia genética. A introdução e crescente acessibilidade das tecnologias de Sequenciamento de Nova Geração (NGS), que permitem a análise simultânea de múltiplos (dezenas a centenas) de genes em painéis ou mesmo o sequenciamento de todo o exoma (WES) ou genoma (WGS), estão revolucionando a capacidade de identificar a causa genética em um número cada vez maior de pacientes.

Frequência de mutações na população brasileira

A caracterização da frequência de mutações genéticas causadoras de surdez na população brasileira é um campo de pesquisa ativo e de fundamental importância para a prática clínica no país. Dada a vasta extensão territorial e a complexa miscigenação étnica que compõe o Brasil, espera-se uma diversidade no perfil mutacional regional.

A mutação c.35delG no gene GJB2 é consistentemente relatada como uma das mais comuns também no Brasil. Um estudo pioneiro realizado em Campinas, São Paulo, com recém-nascidos, encontrou uma prevalência de portadores (heterozigotos) da mutação 35delG de 0,97%, o que corresponde a aproximadamente 1 em cada 103 indivíduos. Outra pesquisa de abrangência nacional, envolvendo famílias com surdez neurossensorial não sindrômica, identificou mutações no gene GJB2 em 22% delas, sendo a variante 35delG responsável por uma expressiva parcela de 84,2% dos alelos mutados encontrados nesse gene. Um estudo de rastreamento mais amplo, que incluiu recém-nascidos de dez cidades localizadas em diferentes regiões do Brasil, detectou a mutação 35delG em 1,35% dos participantes (aproximadamente 1 em cada 74 indivíduos). Em uma coorte específica de crianças candidatas ao implante coclear no Brasil, a homozigose para a mutação 35delG foi identificada em 12% dos casos, sendo considerada a causa direta da surdez.  

A frequência de heterozigotos para a 35delG observada em um estudo com recém-nascidos em uma cidade do interior de São Paulo foi de aproximadamente 1:100. Este valor, embora significativo, é um pouco inferior ao observado em algumas populações europeias, como na Itália (1:32), Portugal (1:40) e Espanha (1:45). Acredita-se que a considerável ancestralidade europeia (particularmente ibérica e italiana) na população brasileira contribua para a alta frequência desta mutação específica em nosso meio.  

Um estudo realizado em Jundiaí (SP) com neonatos que falharam na triagem auditiva neonatal e tiveram diagnóstico de perda auditiva de origem pré-natal, demonstrou que todos os casos com etiologia genética confirmada apresentavam a mutação 35delG em homozigose. Essa perda auditiva era tipicamente de grau severo a profundo. Os autores sugeriram que a alta frequência da mutação nessa coorte específica poderia estar relacionada à forte influência da descendência italiana na composição étnica daquela população local. Este achado reforça não apenas a importância da mutação 35delG, mas também como a composição étnica de uma determinada região pode influenciar a prevalência de mutações específicas.  

Uma revisão integrativa da literatura, ao analisar estudos sobre a etiologia da deficiência auditiva, apontou que, embora no Brasil ainda se observe uma maior predominância de causas não genéticas em comparação com países desenvolvidos, os fatores genéticos são de relevância inquestionável. A mesma revisão citou um estudo internacional que demonstrou uma maior associação do gene GJB2 com surdez em indivíduos caucasianos e hispânicos, não encontrando diagnósticos relacionados a este gene em pacientes afro-americanos. Esta observação sobre a variabilidade étnica na prevalência de mutações no GJB2 é um fator crucial a ser considerado na interpretação de testes genéticos e no planejamento de estratégias de triagem na população brasileira, dada sua diversidade.  

Apesar dos dados existentes, que majoritariamente se concentram na mutação 35delG do GJB2 e em estudos regionais ou de populações específicas (como a descendência italiana em Jundiaí ou os estudos focados na região de Campinas ), o Brasil ainda carece de um mapa genético mais abrangente e detalhado da surdez. A grande miscigenação étnica e as dimensões continentais do país sugerem que a prevalência de diferentes mutações, incluindo aquelas em outros genes além do GJB2, pode variar significativamente entre as diversas regiões e os múltiplos grupos populacionais que formam a nação. A própria revisão da literatura sobre a América Latina já sinaliza a existência de peculiaridades genéticas regionais que demandam estratégias de triagem e diagnóstico personalizadas para áreas geográficas específicas.  

Essa ausência de um panorama genético mais completo da surdez no Brasil representa um desafio considerável. Dificulta, por exemplo, a elaboração de painéis de NGS que sejam verdadeiramente custo-efetivos e otimizados para a nossa realidade populacional. Painéis genéricos, baseados em dados de outras populações, podem levar tanto à não identificação de mutações que são relativamente comuns em determinadas regiões brasileiras, quanto ao investimento desnecessário na investigação de genes que são raros em nosso contexto. Essa lacuna de conhecimento impacta diretamente o desenvolvimento de diretrizes nacionais robustas para a testagem genética, o planejamento eficaz de políticas de saúde pública voltadas para a surdez e a capacidade de oferecer um aconselhamento genético que seja preciso e culturalmente adaptado às diversas realidades do país. Torna-se, portanto, fundamental o fomento e o investimento em pesquisa científica para caracterizar de forma mais detalhada e abrangente o perfil mutacional da surdez genética nas distintas regiões e grupos étnicos do Brasil.

A tabela abaixo resume os principais genes e mutações associados à surdez genética, com foco naqueles de maior relevância e com dados disponíveis sobre sua frequência no Brasil.

Tabela 1: Principais genes e mutações na surdez genética e sua frequência estimada no Brasil

Gene Proteína Tipo de Herança Mutações Frequentes (Brasil em destaque) Prevalência Estimada no Brasil/Populações Específicas Fenótipo Auditivo Típico Referências Chave
GJB2 Conexina 26 AR (mais comum), AD (raro) c.35delG (muito frequente), c.167delT, c.235delC, V37I (c.109G>A), M34T c.35delG: Portadores heterozigotos: ~1:74 a 1:103 recém-nascidos. Homozigotos: 12% em crianças candidatas a IC. 22% das famílias com PANS não sindrômica têm mutações no GJB2. PANS bilateral, pré-lingual, não progressiva, de grau variável (leve a profunda). 35delG/35delG geralmente severa a profunda.
GJB6 Conexina 30 AR (frequentemente digênica com GJB2) Del(GJB6-D13S1830), Del(GJB6-D13S1854) Menos comum que GJB2. Pesquisada em heterozigotos para GJB2 sem segunda mutação. Semelhante ao GJB2, quando em combinação.
SLC26A4 Pendrina AR Variadas (missense, nonsense, splicing). L236P, T416P (Norte da Europa). Dados brasileiros limitados nos snippets. Desconhecida especificamente para o Brasil nos snippets, mas é a segunda causa mais comum de PANS AR globalmente. PANS bilateral, geralmente severa a profunda, frequentemente progressiva e/ou flutuante. Associada a Aqueduto Vestibular Alargado (AVA). Pode ser sindrômica (Pendred) ou não sindrômica (DFNB4).
OTOF Otoferlina AR Variadas. p.Gln829* (Q829X) descrita em algumas populações. Dados brasileiros limitados. Rara, mas importante causa de neuropatia auditiva. Frequência exata no Brasil não detalhada nos snippets. PANS pré-lingual, severa a profunda. Frequentemente com fenótipo de Transtorno do Espectro da Neuropatia Auditiva (TENA).
MT-RNR1 (DNA mitocondrial) RNA ribossômico 12S Mitocondrial m.1555A>G, m.A827G m.1555A>G: Prevalência exata no Brasil não detalhada, mas teste disponível. A827G observada em estudo de Jundiaí, mas papel incerto. PANS de grau variável, pode ser induzida/agravada por aminoglicosídeos (m.1555A>G).
USH2A Usina AR Variadas. Causa comum de Síndrome de Usher tipo 2. Frequência específica no Brasil não detalhada. PANS congênita, moderada a severa, associada a Retinose Pigmentar de início mais tardio.
MYO7A Miosina VIIA AR Variadas. Causa comum de Síndrome de Usher tipo 1B. Frequência específica no Brasil não detalhada. PANS congênita, profunda, associada a disfunção vestibular e Retinose Pigmentar de início precoce.

 

PANS: Perda Auditiva Neurossensorial; AR: Autossômica Recessiva; AD: Autossômica Dominante; IC: Implante Coclear.

Surdez Sindrômica: foco em manifestações sutis e sinais de alerta

A surdez sindrômica, na qual a perda auditiva coexiste com anomalias em outros órgãos ou sistemas, representa uma proporção significativa dos casos de surdez genética, estimada entre 20% e 30% da surdez pré-lingual de origem hereditária. A identificação de uma síndrome subjacente é de suma importância clínica, pois não apenas direciona a investigação genética e o aconselhamento, mas também alerta para a necessidade de avaliação e acompanhamento multidisciplinar, visando o manejo adequado das comorbidades que podem impactar a saúde global e a qualidade de vida do paciente. Em muitos casos, a perda auditiva pode ser a manifestação mais precoce ou evidente da síndrome, funcionando como um “sinal de alerta” para uma condição sistêmica subjacente. Outros achados podem ser sutis, não reconhecidos inicialmente, ou se desenvolverem apenas em fases posteriores da vida.  

A falha em considerar e investigar uma possível etiologia sindrômica em uma criança que se apresenta “apenas” com surdez pode levar à perda de uma janela de oportunidade crucial para o diagnóstico precoce de condições associadas que requerem manejo específico e, por vezes, urgente. Por exemplo, o diagnóstico tardio da Síndrome de Jervell e Lange-Nielsen pode ter consequências cardíacas fatais, enquanto a não identificação da Síndrome de Alport pode levar à progressão não monitorada da doença renal. Da mesma forma, o diagnóstico precoce da Síndrome de Usher é vital para o planejamento de suporte devido à dupla deficiência sensorial (auditiva e visual). Um estudo de caso familiar ilustrou como a perda auditiva hereditária pode se manifestar de forma sutil, com alguns indivíduos afetados não apresentando queixas auditivas evidentes, mas demonstrando perdas em altas frequências na audiometria, reforçando a necessidade de avaliação audiológica completa em familiares de indivíduos com surdez genética.  

O diagnóstico genético da surdez, ao identificar um gene classicamente associado a uma síndrome, mesmo que as outras características sindrômicas não sejam proeminentes no momento, desencadeia uma importante cascata de investigações e acompanhamentos multidisciplinares. Esse processo pode ser vital para a saúde e qualidade de vida global do paciente, estendendo-se muito além da questão auditiva isolada. Isso reforça a importância de uma anamnese detalhada e de um exame físico minucioso em toda criança com perda auditiva, buscando ativamente por sinais, mesmo que discretos, de possível envolvimento sistêmico.

A seguir, são apresentadas algumas das síndromes genéticas mais comuns que cursam com surdez, com ênfase em seus sinais de alerta, incluindo manifestações que podem ser sutis:

A tabela a seguir visa auxiliar o clínico na suspeição diagnóstica de algumas síndromes comuns que cursam com surdez, destacando manifestações que podem ser sutis.

Tabela 2: Sinais de Alerta para Surdez Sindrômica com Manifestações Sutis

Síndrome Gene(s) Principal(is) Padrão de Herança Manifestações Auditivas Chave Sinais de Alerta Extra-Auditivos Sutis (por sistema) Testes Adicionais Chave Referências Chave
Usher (USH) MYO7A, USH2A, CDH23, PCDH15, CLRN1 etc. AR USH1: PANS congênita profunda, vestibular. USH2: PANS congênita moderada-severa. USH3: PANS progressiva. Oculares: Cegueira noturna (nictalopia), dificuldade de adaptação ao escuro, restrição progressiva do campo visual (visão tubular), tropeços. Vestibulares (USH1): Atraso no desenvolvimento motor (sentar, andar), instabilidade. Avaliação oftalmológica completa (incluindo eletrorretinograma, campo visual), avaliação vestibular.
Waardenburg (SW) PAX3, MITF, SOX10, EDN3, EDNRB, SNAI2 AD (maioria), AR (raro) PANS uni ou bilateral, congênita, grau variável (leve a profunda). Pigmentares: Olhos azuis muito claros ou heterocromia iridis, mecha branca de cabelo (frontal ou difusa), manchas hipopigmentadas na pele. Faciais (SW1): Distopia cantorum (aumento da distância entre cantos internos dos olhos), base nasal alargada, sinofris. Avaliação oftalmológica (distopia cantorum, pigmentação da íris), avaliação dermatológica.
Pendred (SP) SLC26A4 AR PANS bilateral, severa a profunda, frequentemente progressiva e/ou flutuante. Associada a Aqueduto Vestibular Alargado (AVA) e/ou Displasia de Mondini. Tireoide: Bócio eutireoidiano (pode ser ausente na infância). Vestibular: Vertigem/tontura episódica, instabilidade (especialmente após trauma craniano leve). TC de ossos temporais (para AVA/Mondini), Ultrassonografia de tireoide, Teste de descarga de perclorato (histórico, menos usado), função tireoidiana (TSH, T4L).
Jervell e Lange-Nielsen (SJLN) KCNQ1, KCNE1 AR PANS congênita, bilateral, profunda. Cardíacos: Síncope (desmaios), convulsões (especialmente desencadeadas por emoção, exercício, susto), história familiar de morte súbita em jovens. Palpitações. Eletrocardiograma (ECG) para medir intervalo QT corrigido (QTc). Holter. Teste ergométrico (com cautela).
Alport COL4A3, COL4A4, COL4A5 Ligada ao X (mais comum), AR, AD PANS bilateral, progressiva, iniciando em altas frequências. Renais: Hematúria microscópica persistente (pode ser o 1º sinal), proteinúria, hipertensão arterial, edema. História familiar de doença renal/diálise. Oculares: Lenticone anterior, catarata, alterações retinianas. Urinálise (EAS, proteinúria de 24h), função renal (ureia, creatinina), avaliação oftalmológica (lâmpada de fenda). Biópsia renal em casos selecionados.
Branchio-Oto-Renal (BOR) EYA1, SIX1, SIX5 AD Perda auditiva condutiva, neurossensorial ou mista, uni ou bilateral, grau variável. Malformações da orelha externa/média/interna. Branquiais: Fossetas ou apêndices pré-auriculares, cistos ou fístulas cervicais laterais. Renais: Anomalias estruturais (hipoplasia, displasia, agenesia), que podem ser assintomáticas. Ultrassonografia renal. Avaliação otorrinolaringológica detalhada da orelha externa e média.

 

PANS: Perda Auditiva Neurossensorial; AR: Autossômica Recessiva; AD: Autossômica Dominante.

Abordagem clínica e diagnóstica

Anamnese detalhada: história clínica, perinatal e familiar

A anamnese constitui o pilar fundamental na investigação da surdez genética, fornecendo pistas cruciais para o direcionamento diagnóstico e a suspeição de etiologias específicas. Uma coleta de dados abrangente e meticulosa é indispensável.

O histórico familiar deve ser investigado exaustivamente, buscando-se a presença de outros casos de perda auditiva entre parentes (pais, irmãos, tios, avós, primos), a idade de início e a progressão da surdez nesses familiares, e a ocorrência de consanguinidade entre os genitores, um fator que aumenta o risco de doenças autossômicas recessivas. É importante questionar sobre síndromes genéticas já diagnosticadas na família ou a presença de outros problemas de saúde que possam estar associados à surdez (ex: problemas renais, visuais, cardíacos, tireoidianos, alterações pigmentares).  

A história da perda auditiva do próprio paciente deve ser detalhada, incluindo:

O histórico perinatal é igualmente relevante, abrangendo:

O histórico pós-natal deve incluir:

No Brasil, estudos identificaram diversos indicadores de risco para perda auditiva em neonatos e lactentes, que devem ser ativamente investigados na anamnese. Estes incluem, além da história familiar de perda auditiva infantil permanente, fatores como prematuridade, baixo peso ao nascer, permanência em UTI neonatal, uso de medicação ototóxica e infecções congênitas. A presença de múltiplos fatores de risco concomitantemente pode aumentar significativamente a chance de falha na triagem auditiva neonatal e de uma perda auditiva instalada.  

É crucial reconhecer que muitos dos fatores de risco classicamente considerados “ambientais” ou “adquiridos” podem, na verdade, interagir com uma suscetibilidade genética subjacente. Por exemplo, infecções congênitas ou o uso de medicamentos ototóxicos durante o período perinatal são causas conhecidas de surdez. No entanto, a resposta individual a esses agressores pode ser modulada por fatores genéticos. Um exemplo emblemático é a mutação m.1555A>G no DNA mitocondrial, que confere uma alta suscetibilidade à ototoxicidade induzida por antibióticos aminoglicosídeos, mesmo em doses terapêuticas usuais ou por curtos períodos de exposição. Assim, uma criança que desenvolve surdez após o uso de um aminoglicosídeo pode ter essa evolução não apenas pelo medicamento em si, mas pela combinação do fármaco com sua predisposição genética.  

Esta intersecção entre fatores ambientais e genéticos implica que a identificação de um fator de risco perinatal ou pós-natal não deve, por si só, encerrar a investigação etiológica. A perda auditiva pode ser desproporcional ao fator de risco identificado, ou podem existir outros elementos na história ou no exame físico que sugiram um componente genético contribuinte ou primário. O reconhecimento desta complexa interação é vital, pois o diagnóstico de uma variante genética de suscetibilidade, além de explicar a surdez atual, possui implicações diretas para o aconselhamento genético (informando sobre riscos para outros membros da família e para futuras gestações) e para a prevenção de novas exposições deletérias (como evitar futuras administrações de aminoglicosídeos em indivíduos com a mutação m.1555A>G).

Exame físico direcionado: avaliação otorrinolaringológica e sistêmica

Paralelamente a uma anamnese detalhada, um exame físico completo e direcionado é essencial na avaliação de um paciente com surdez, especialmente quando há suspeita de etiologia genética. O objetivo é identificar não apenas alterações diretamente relacionadas ao sistema auditivo, mas também quaisquer sinais, mesmo que sutis, em outros órgãos ou sistemas que possam compor uma síndrome genética.  

A avaliação otorrinolaringológica deve incluir:

A avaliação sistêmica deve ser abrangente, com atenção especial para:

O exame físico deve ser conduzido de forma sistemática e detalhada. Achados que podem parecer isolados ou de pouca importância, quando considerados em conjunto com a perda auditiva e o histórico familiar, podem ser a chave para o diagnóstico de uma síndrome genética específica. É importante ressaltar que a ausência de achados dismórficos ou sistêmicos evidentes não exclui a possibilidade de uma síndrome, pois algumas manifestações podem ser muito sutis ou se desenvolverem mais tardiamente. Contudo, a presença de qualquer achado positivo direciona fortemente a investigação complementar e a necessidade de encaminhamento para avaliações especializadas (geneticista, oftalmologista, nefrologista, cardiologista, endocrinologista, etc.).

A investigação audiológica Essencial

A investigação audiológica é um componente central e indispensável na avaliação de qualquer indivíduo com suspeita ou queixa de perda auditiva. Seus objetivos primários são: confirmar a presença da perda auditiva, determinar o seu tipo (se condutiva, neurossensorial ou mista), quantificar o seu grau (leve, moderada, severa ou profunda) e caracterizar sua configuração (unilateral ou bilateral, simétrica ou assimétrica, e quais frequências sonoras são mais afetadas).  

Os métodos e testes audiológicos empregados variam consideravelmente de acordo com a idade cronológica e o desenvolvimento neuropsicomotor do paciente, bem como sua capacidade de colaboração:

 

 

 

A caracterização precisa do fenótipo audiológico através desses exames é de extrema importância. Certos padrões audiométricos podem ser sugestivos de etiologias genéticas específicas. Por exemplo, uma perda auditiva predominantemente em baixas frequências pode levantar a suspeita de mutações no gene WFS1. Uma configuração audiométrica em “U” (pior nas frequências médias) foi associada à mutação c.101T>C no gene GJB2 em alguns estudos. A identificação do Transtorno do Espectro da Neuropatia Auditiva (TENA), caracterizado por PEATE ausente ou severamente alterado na presença de emissões otoacústicas normais, é um fenótipo particularmente importante a ser reconhecido, pois está frequentemente associado a mutações em genes como o OTOF. O TENA possui implicações distintas para o manejo, incluindo a indicação e o prognóstico do implante coclear.  

Exames de imagem (TC de Ossos Temporais, RM): indicações

Os exames de imagem, notadamente a Tomografia Computadorizada (TC) de ossos temporais e a Ressonância Magnética (RM) de orelhas internas e ângulo ponto-cerebelar, desempenham um papel crucial na investigação etiológica da surdez, especialmente quando há suspeita de alterações estruturais ou em contextos clínicos específicos.  

 

Indicações Gerais para Exames de Imagem na Surdez: A decisão de solicitar exames de imagem deve ser individualizada, mas algumas indicações gerais incluem :  

A escolha entre TC e RM, ou a necessidade de ambos, depende da suspeita clínica principal. Em muitos casos de surdez congênita ou de início precoce, especialmente se houver suspeita de malformação óssea, a TC é frequentemente o primeiro exame. Se houver preocupação com o nervo auditivo ou estruturas intracranianas, a RM é indispensável. Para a avaliação completa pré-implante coclear, muitos centros utilizam ambos os exames.

Os exames de imagem desempenham um papel fundamental na tentativa de “desmistificar” casos de surdez inicialmente classificados como idiopáticos. A revelação de malformações, mesmo que sutis, da orelha interna pode fornecer pistas etiológicas importantes. Por exemplo, a identificação de um Aqueduto Vestibular Alargado (AVA) na TC ou RM direciona fortemente a investigação para mutações no gene SLC26A4. Além de auxiliar no diagnóstico genético, a identificação de uma malformação como o AVA também traz consigo implicações clínicas específicas, como o alerta para o risco aumentado de progressão da perda auditiva após traumatismos cranianos, mesmo que leves, e a possibilidade de flutuações auditivas.  

No contexto do planejamento cirúrgico para o implante coclear, os exames de imagem são absolutamente indispensáveis. Eles permitem ao cirurgião avaliar detalhadamente a anatomia da cóclea (seu tamanho, forma, número de giros, presença de ossificação), a perviedade do nervo vestibulococlear e identificar possíveis desafios ou riscos cirúrgicos. Por exemplo, em casos de malformações com comunicação anômala entre o espaço liquórico e a orelha interna, como pode ocorrer em algumas displasias cocleares ou AVAs muito largos, existe um risco aumentado de “gusher” de perilinfa (extravasamento profuso de líquido perilinfático) durante a cocleostomia. A identificação prévia dessas condições permite um planejamento cirúrgico mais cuidadoso e, em alguns casos, a necessidade de eletrodos de implante coclear especiais, adaptados para cócleas malformadas ou hipoplásicas.  

Testagem genética para Surdez no contexto brasileiro

Tecnologias Disponíveis: Painéis NGS e Sequenciamento de Exoma Completo (WES)

O advento e a disseminação das tecnologias de Sequenciamento de Nova Geração (NGS) representaram uma revolução no campo do diagnóstico genético, particularmente para condições com alta heterogeneidade genética como a surdez. Atualmente, os testes genéticos moleculares são considerados o padrão de cuidado na avaliação etiológica de indivíduos com perda auditiva de causa indeterminada. As principais abordagens baseadas em NGS para a investigação da surdez incluem:  

A escolha entre um painel de NGS e o WES depende de vários fatores, incluindo a apresentação clínica do paciente (presença de sinais sindrômicos, padrão de herança familiar, fenótipo audiológico específico), os resultados de investigações prévias, a disponibilidade dos testes e considerações de custo. Para casos com características bem definidas que apontam para um grupo restrito de genes, um painel direcionado pode ser a abordagem inicial mais eficiente. Em situações de maior incerteza diagnóstica, o WES oferece uma investigação mais ampla. É importante notar que ambas as tecnologias podem identificar variantes de significado incerto (VUS), cujo papel na patogênese da doença pode não ser claro, exigindo interpretação cuidadosa por geneticistas e, por vezes, estudos adicionais.

Disponibilidade, cobertura de genes e custos no Brasil

No Brasil, a disponibilidade de testes genéticos para surdez tem aumentado progressivamente, com diversos laboratórios públicos e privados oferecendo diferentes modalidades de análise.

Acesso no SUS e cobertura pela saúde suplementar (ANS)

O acesso a testes genéticos para surdez no Brasil é uma questão complexa, marcada por disparidades entre o sistema público e o privado, e por uma cobertura ainda limitada e fragmentada.

No âmbito da Saúde Suplementar, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) define, através do seu Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, quais exames e tratamentos devem ter cobertura obrigatória pelos planos de saúde. A Resolução Normativa (RN) 465/2021 e suas atualizações subsequentes estabelecem as Diretrizes de Utilização (DUT) para diversos procedimentos genéticos. No entanto, o Rol da ANS não especifica, de forma explícita e generalizada, a cobertura para painéis NGS abrangentes ou Sequenciamento Completo do Exoma (WES) com a indicação primária de diagnóstico etiológico de “surdez hereditária”.  

Apesar disso, o mesmo Rol contempla a cobertura de testes genéticos (incluindo NGS e WES em alguns casos) para o diagnóstico de síndromes genéticas específicas que podem cursar com surdez como uma de suas manifestações. Exemplos incluem a Síndrome de CHARGE (pesquisa de mutação no gene CHD7), Síndrome de Noonan (painel NGS para genes como PTPN1, SOS1), Osteogênese Imperfeita (painel NGS para genes como COL1A1, COL1A2), entre outras. Além disso, o WES é coberto em contextos específicos, como na investigação de deficiência intelectual de causa indeterminada ou Transtorno do Espectro Autista (TEA) após um resultado negativo em exames de microarray (CGH-Array ou SNP-array). Isso significa que, indiretamente, um paciente com surdez e outras características que configurem uma suspeita dessas síndromes cobertas, ou que se enquadre nos critérios para investigação de DI/TEA, poderia ter acesso ao teste genético relevante. Contudo, para casos de surdez aparentemente não sindrômica ou síndromes raras não listadas explicitamente com DUT para teste genético, a cobertura pode ser negada. O painel para surdez da Dasa Genômica, por exemplo, é explicitamente mencionado como não tendo cobertura pela ANS.  

No Sistema Único de Saúde (SUS), a situação é ainda mais restritiva. Embora testes genéticos mais simples e de baixo custo, como a pesquisa da mutação 35delG no gene GJB2 e da mutação m.1555A>G no DNA mitocondrial, estejam comercialmente disponíveis no Brasil há algum tempo , sua incorporação e disponibilidade rotineira na rede pública são limitadas e heterogêneas, dependendo da organização de serviços de genética em cada estado ou município e da disponibilidade de recursos em hospitais universitários ou centros de referência. A investigação do gene SLC26A4 (associado à Síndrome de Pendred), por exemplo, não estava disponível no Brasil em 2003 , e o acesso a painéis NGS ou WES para surdez no SUS é ainda mais raro, geralmente restrito a protocolos de pesquisa ou serviços altamente especializados.  

Diretrizes nacionais para Testagem Genética (AMB, SBGM, etc., se disponíveis)

No Brasil, as diretrizes para testagem genética da surdez buscam equilibrar os avanços tecnológicos com a realidade de acesso e custos. A Associação Médica Brasileira (AMB), em suas diretrizes publicadas em janeiro de 2021, propõe uma abordagem escalonada para a investigação genética da surdez hereditária.  

As diretrizes da AMB também abordam o uso de tecnologias mais abrangentes como os painéis de NGS e o WES:

 

Essas diretrizes da AMB refletem uma abordagem pragmática e escalonada, que leva em consideração a realidade de custos e a disponibilidade de diferentes tecnologias no cenário brasileiro. Elas reconhecem o potencial diagnóstico das ferramentas de NGS, mas também ponderam sobre as barreiras atuais para sua implementação em larga escala.

Correlação genótipo-fenótipo e implicações prognósticas

A identificação da variante genética específica causadora da surdez permite, em muitos casos, estabelecer correlações entre o genótipo (a constituição genética) e o fenótipo (as características clínicas observadas, incluindo o tipo, grau e progressão da perda auditiva). Esse conhecimento é crucial para o prognóstico individualizado e para a tomada de decisões terapêuticas, incluindo a indicação e as expectativas em relação ao implante coclear.

Impacto de mutações Específicas na Gravidade e Progressão da Perda Auditiva

A relação entre o genótipo e as características da perda auditiva é complexa e nem sempre linear, mas diversos estudos têm elucidado padrões importantes para genes frequentemente implicados na surdez.

Gene GJB2 (Conexina 26):

 

 

Gene SLC26A4 (Pendrina):

 

 

Gene OTOF (Otoferlina):

 

Gene USH2A (Usina):

 

Síndrome de Noonan e RASopatias Relacionadas:

Outros genes associados à progressão:

 

A identificação de genes e mutações específicas que estão associados à progressão da perda auditiva é de extrema relevância clínica. Uma perda auditiva diagnosticada como leve ou moderada ao nascimento pode não gerar o mesmo nível de preocupação imediata que uma perda profunda. No entanto, se o genótipo subjacente indicar um alto risco de progressão, a conduta clínica deve ser mais proativa e vigilante. A progressão não antecipada ou não identificada precocemente pode levar a um atraso crítico na adequação das estratégias de reabilitação auditiva, como o ajuste dos parâmetros dos Aparelhos de Amplificação Sonora Individual (AASI) ou a indicação oportuna do implante coclear.

Tal atraso pode ter um impacto negativo substancial no desenvolvimento da linguagem oral, na comunicação e no progresso educacional da criança. O conhecimento do potencial de progressão associado a um genótipo específico permite, portanto, o estabelecimento de um plano de acompanhamento audiológico mais rigoroso e individualizado. Além disso, possibilita uma discussão mais informada e antecipada com a família sobre as possíveis futuras necessidades de intervenção, incluindo o momento ideal para considerar o implante coclear, otimizando assim a janela de oportunidade neurobiológica para o desenvolvimento linguístico e auditivo.

Prognóstico para Implante Coclear (IC) Baseado no Genótipo

O diagnóstico genético está se tornando uma ferramenta cada vez mais valiosa não apenas para determinar a etiologia da surdez, mas também para auxiliar na previsão do prognóstico e dos resultados esperados com o implante coclear (IC). Diferentes genes e tipos de mutações podem influenciar a resposta à estimulação elétrica.

Gene GJB2 (Conexina 26):

Gene OTOF (Otoferlina):

 

Gene SLC26A4 (Pendrina – Síndrome de Pendred / DFNB4 com AVA):

 

 

Síndrome de Usher (USH):

 

 

Surdez ligada ao X tipo 2 (DFNX2, gene PRPS1):

 

Outros genes e considerações gerais:

Um estudo amplo que avaliou o sucesso do IC em crianças com diversas causas genéticas de surdez encontrou que, embora todos os grupos tenham melhorado a percepção da fala após o IC, o grau de sucesso variou substancialmente de acordo com o genótipo. Após ajustes para fatores como idade da implantação e tempo de uso do dispositivo, a percepção da fala tendeu a ser mais alta em crianças com perda auditiva causada por mutações nos genes MITF ou TMPRSS3.  

A presença de malformações da orelha interna ou anomalias cerebrais, que podem ter uma base genética, é um fator que pode comprometer os resultados do implante coclear. No entanto, mesmo nesses cenários complexos, resultados funcionais bons ainda são possíveis, embora o prognóstico possa ser mais reservado em comparação com cócleas anatomicamente normais. Um estudo observou que a presença concomitante de malformações da orelha interna em pacientes com uma mutação genética conhecida (como a 35delG no GJB2) pode levar a um resultado pior do que o esperado para aquela mutação em uma cóclea sem malformações. A deficiência do nervo coclear (hipoplasia ou aplasia) é um fator prognóstico particularmente negativo para o IC convencional.  

 

A identificação de genes como GJB2 e OTOF como associados a “bons” resultados com o IC levanta um ponto importante para o aconselhamento. Isso ocorre, em grande medida, porque a patologia nesses casos é primariamente coclear (disfunção das junções comunicantes no GJB2) ou pré-sináptica (defeito na neurotransmissão no OTOF), deixando o nervo auditivo e as vias auditivas centrais geralmente intactos e, portanto, mais responsivos à estimulação elétrica direta fornecida pelo implante.

Este conhecimento, embora positivo, pode, paradoxalmente, gerar uma expectativa muito elevada por um resultado “excelente” ou “perfeito” com o IC em famílias que recebem esses diagnósticos genéticos. É fundamental que o aconselhamento pré-implante module essas expectativas. Embora o prognóstico genético seja um fator importante e favorável nesses casos, ele não é uma garantia absoluta de um desfecho específico. A variabilidade individual nos resultados do IC ainda existe e é influenciada por uma miríade de outros fatores, incluindo a idade no momento da implantação, a qualidade e consistência da reabilitação fonoaudiológica, o suporte familiar e ambiental, e a presença de comorbidades não detectadas ou de fatores neurocognitivos individuais.

Portanto, no aconselhamento pré-IC, o médico deve comunicar essas nuances de forma clara e equilibrada. O diagnóstico genético informa e auxilia no prognóstico, mas não determina de forma absoluta e isolada todo o desfecho da reabilitação auditiva. É preciso preparar a família para um processo que, embora promissor, exige dedicação e pode apresentar variações. Da mesma forma, a identificação de genes ou condições associadas a resultados potencialmente menos favoráveis com o IC (como mutações no PCDH15 ou em casos de deficiência significativa do nervo coclear ) também é vital para um aconselhamento realista e para o planejamento de estratégias de reabilitação alternativas ou complementares, se necessário.  

A tabela abaixo sumariza a correlação genótipo-fenótipo e o prognóstico para implante coclear para algumas das mutações genéticas mais relevantes discutidas.

Tabela 4: Correlação Genótipo-Fenótipo e Prognóstico para Implante Coclear em Mutações Selecionadas

Gene/Mutação Específica Fenótipo Auditivo Típico (Gravidade, Progressão, Início) Presença Comum de Neuropatia Auditiva Malformações Comuns da Orelha Interna Prognóstico Geral com Implante Coclear Considerações Específicas para IC Referências Chave
GJB2 (ex: c.35delG/c.35delG) PANS congênita, bilateral, geralmente severa a profunda, tipicamente não progressiva (embora progressão possa ocorrer em alguns casos). Não Geralmente ausentes (cóclea estruturalmente normal). Bom a Excelente Idade precoce de implantação é ideal. Geralmente boa resposta à estimulação elétrica. Resultados de fala costumam ser favoráveis.
GJB2 (ex: V37I/V37I ou c.35delG/V37I) PANS congênita, bilateral, leve a moderada, geralmente estável. Não Geralmente ausentes. Variável (muitos não atingem critérios para IC devido à perda mais leve). Se IC indicado por progressão, prognóstico pode ser bom. Monitorar progressão. Decisão de IC baseada na audição funcional.
SLC26A4 (Pendrina) PANS congênita ou de início na infância, bilateral, severa a profunda, frequentemente progressiva e/ou flutuante. Não Aqueduto Vestibular Alargado (AVA) é comum; Displasia de Mondini pode ocorrer. Bom, mas pode haver maior variabilidade. Risco de “gusher” de perilinfa durante a cirurgia devido ao AVA. Possível vertigem pós-operatória. Implantação pode ser mais tardia devido à natureza da perda.
OTOF (Otoferlina) PANS congênita, bilateral, profunda. Sim (frequente fenótipo de TENA pré-sináptica). Geralmente ausentes. Bom a Excelente Idade precoce de implantação é crucial. Resposta ao IC geralmente contorna o defeito sináptico.
USH2A (Usher Tipo 2) PANS congênita, bilateral, moderada a severa, pode ser progressiva. Não Geralmente ausentes. Bom a Excelente Considerar a progressão da perda visual (Retinose Pigmentar) no planejamento da reabilitação global. Resultados de fala com IC costumam ser bons.
MYO7A (Usher Tipo 1) PANS congênita, bilateral, profunda. Disfunção vestibular severa. Não Geralmente ausentes, mas desenvolvimento coclear pode ser afetado em nível celular. Bom, mas pode ser mais variável que GJB2. Reabilitação vestibular e visual concomitantes são essenciais. Idade precoce de IC é fundamental.
PCDH15 (Usher Tipo 1) PANS congênita, bilateral, profunda. Disfunção vestibular. Não Geralmente ausentes. Mais reservado/variável em comparação com outros genes de Usher ou GJB2. Aconselhamento cuidadoso sobre expectativas. Reabilitação intensiva.
TMPRSS3 PANS pré ou pós-lingual, progressiva, severa a profunda. Não Geralmente ausentes. Bom a Excelente Perda progressiva pode levar à indicação de IC. Resultados de percepção de fala com IC tendem a ser altos.
Mutações em genes associados a malformações cocleares significativas (ex: alguns casos de POU3F4, displasias complexas) Variável, frequentemente severa a profunda. Pode ser mista. Variável Presentes (ex: hipoplasia coclear, canal auditivo interno estreito, Mondini complexa). Reservado a Variável Risco cirúrgico aumentado. Necessidade de eletrodos especiais. Resultados dependem da integridade do nervo auditivo e da possibilidade de estimulação efetiva.
Deficiência do Nervo Coclear (Aplasia/Hipoplasia) PANS profunda, frequentemente com respostas ausentes no PEATE. Sim (pode mimetizar TENA, mas com nervo deficiente). Pode estar associada a canal auditivo interno estreito. Muito Reservado a Pobre (para IC convencional). IC convencional geralmente não é eficaz. Implante Auditivo de Tronco Encefálico (ABI) pode ser uma opção em casos selecionados. RM é crucial para diagnóstico.

 

PANS: Perda Auditiva Neurossensorial; TENA: Transtorno do Espectro da Neuropatia Auditiva; AVA: Aqueduto Vestibular Alargado.

Implicações dos dados genéticos para a conduta clínica

O conhecimento da etiologia genética da surdez transcende o mero interesse acadêmico, possuindo implicações diretas e profundas na conduta clínica diária. Desde a escolha da estratégia de reabilitação auditiva até o aconselhamento sobre terapias emergentes e o planejamento do acompanhamento a longo prazo, os dados genéticos oferecem um roteiro mais preciso e individualizado para o cuidado do paciente.

Terapias emergentes e perspectivas futuras (com foco em terapia gênica)

O campo da surdez genética tem sido palco de avanços promissores em terapias emergentes, com destaque para a terapia gênica. Embora ainda não seja uma realidade na prática clínica rotineira no Brasil , os progressos recentes em nível internacional são encorajadores.  

Um marco significativo foi a demonstração de recuperação auditiva parcial em crianças com surdez congênita causada por mutações no gene OTOF (otoferlina), após a administração de uma terapia gênica diretamente na cóclea. Um ensaio clínico, cujos resultados foram publicados na revista The Lancet e destacados pela Science, utilizou um vírus adeno-associado (AAV) modificado como vetor para entregar uma cópia funcional do gene OTOF às células da orelha interna.

Em cinco dos seis pacientes tratados, observou-se melhora auditiva devido à expressão da proteína otoferlina funcional, essencial para a neurotransmissão auditiva. Uma estratégia chave para o sucesso desta terapia foi a divisão do gene OTOF, que é grande, em duas partes, utilizando dois vetores virais para sua entrega.  

Apesar desses avanços entusiasmantes, diversos desafios persistem:

A perspectiva de terapias gênicas para surdez, embora promissora, evidencia um “funil genético”. Ou seja, para que um paciente possa se beneficiar de uma terapia futura direcionada a um gene específico (como o OTOF), ele primeiro precisa ter sua condição genética precisamente diagnosticada. Isso significa que a capacidade de realizar testes genéticos abrangentes e acessíveis é um pré-requisito fundamental. Sem uma triagem genética ampla, muitos potenciais candidatos a essas futuras terapias podem nunca ser identificados. A atual limitação no acesso a testes genéticos detalhados no Brasil pode se tornar uma barreira ainda maior à medida que mais terapias gênicas específicas se tornem disponíveis globalmente.

Isso cria um paradoxo: a terapia pode existir, mas poucos conseguem passar pelo “gargalo” do diagnóstico genético preciso para acessá-la. Portanto, o investimento na capacidade diagnóstica genética hoje não é apenas para melhorar o cuidado atual, mas também para preparar o terreno para as inovações terapêuticas do futuro. A professora Regina Célia Mingroni Netto, citada em uma das fontes, defende a importância de tornar os testes genéticos mais acessíveis em hospitais públicos para identificar potenciais candidatos a terapias gênicas.  

C. Acompanhamento Multidisciplinar e a Longo Prazo

O manejo da surdez genética, especialmente em suas formas sindrômicas ou progressivas, exige uma abordagem de cuidado contínuo e coordenado, envolvendo uma equipe multidisciplinar e um plano de acompanhamento a longo prazo.  

 

O acompanhamento a longo prazo, portanto, não se limita à questão auditiva, mas abrange a saúde integral do indivíduo, especialmente nos casos sindrômicos. A identificação da causa genética é o que permite antecipar riscos, programar rastreamentos específicos e implementar medidas preventivas ou de manejo precoce para as diversas comorbidades potenciais.

Síntese dos impactos do diagnóstico genético na conduta médica

A incorporação da investigação genética na avaliação da surdez representa uma mudança de paradigma, transformando a abordagem de meramente sintomática para fundamentalmente etiológica. O diagnóstico genético preciso tem múltiplos e profundos impactos na conduta médica:

  1. Elucidação etiológica: Permite identificar a causa subjacente da perda auditiva em uma proporção significativa de casos, especialmente em perdas congênitas ou de início precoce, encerrando a “jornada diagnóstica” para muitas famílias. 
  2. Prognóstico individualizado: O genótipo específico pode fornecer informações valiosas sobre a provável história natural da perda auditiva, incluindo se ela tende a ser estável, progressiva ou flutuante, e qual o grau de severidade esperado.  
  3. Identificação de quadros sindrômicos: O teste genético pode revelar uma síndrome subjacente mesmo quando as manifestações extra-auditivas são sutis ou ainda não evidentes, alertando para a necessidade de investigação e manejo de comorbidades em outros órgãos e sistemas (ex: renal, cardíaco, visual, endócrino).  
  4. Direcionamento terapêutico: Informa a escolha das opções de reabilitação auditiva mais adequadas (AASI, tipo de AASI, indicação e momento do implante coclear) e o prognóstico esperado com essas intervenções.  
  5. Aconselhamento genético: É a base para um aconselhamento genético preciso, permitindo informar a família sobre o modo de herança, calcular os riscos de recorrência para futuros filhos e outros familiares, e discutir opções de planejamento reprodutivo.  
  6. Prevenção e manejo de riscos específicos: Em certos casos, como na identificação da mutação m.1555A>G, o diagnóstico genético permite evitar fatores de risco conhecidos (ex: aminoglicosídeos).  
  7. Acesso a terapias emergentes: Com o avanço da terapia gênica, o diagnóstico molecular específico será um pré-requisito para a elegibilidade a esses tratamentos futuros.  
  8. Impacto psicossocial: Fornece respostas e pode reduzir a ansiedade associada a uma condição de causa desconhecida, além de conectar famílias a grupos de apoio e recursos específicos.  

A surdez genética, com sua alta prevalência, complexidade molecular e o impacto transformador que o diagnóstico genético pode ter no manejo clínico e na vida dos pacientes e suas famílias, emerge como um campo paradigmático. Ela oferece uma oportunidade única para a implementação e o avanço dos princípios da medicina de precisão dentro do Sistema Único de Saúde brasileiro. Os desafios atuais – que incluem questões de custo, acesso a tecnologias, necessidade de dados populacionais robustos e a urgência por formação especializada – são, de fato, emblemáticos das barreiras mais amplas que a medicina de precisão enfrenta em um país de dimensões continentais e com recursos limitados como o Brasil.

Contudo, ao enfrentar e buscar superar esses desafios especificamente no contexto da surdez genética – por meio da formulação de políticas de incorporação de tecnologias diagnósticas que sejam baseadas em critérios sólidos de custo-efetividade, do fomento à pesquisa científica nacional para mapear a nossa diversidade genética, da criação de redes de referência bem estruturadas e da capacitação contínua dos profissionais de saúde – o Brasil poderia não apenas aprimorar drasticamente o cuidado aos indivíduos com perda auditiva de causa genética, mas também pavimentar o caminho e desenvolver uma infraestrutura de conhecimento e serviços que beneficiaria o manejo de inúmeras outras doenças genéticas no âmbito do SUS. A surdez genética pode, assim, funcionar como um catalisador, um “cavalo de Troia” positivo, para impulsionar a genômica e a medicina personalizada na saúde pública brasileira, com potencial para transformar a qualidade de vida de milhões de cidadãos.

 

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